PEQUENO GLOSSÁRIO PARA O PENSAMENTO ECONÔMICO APLICÁVEL À ECONOMIA CRIATIVA
Houve na China o imperador Shih Huang Ti,
vivido ainda antes de Cristo. Importante por, entre outras façanhas, ter
operado a unificação de todo o País, ou seja, de ter literalmente fundado uma
das mais poderosas nações do mundo. Shih Huang Ti instituiu uma administração
centralizada – que implicou entre outra coisa na destruição e banimento de
textos e referências consideradas “recalcitrantes” – e desenvolveu uma grande rede de logística
formada por estradas e canais. Em sua disputa por território com os povos das
Estepes acabou dando início ao gigantesco esforço pela construção da Grande
Muralha da China. Esse é o mesmo Shih Huang Ti que criou um exército de
soldados de terracota e morreu tentando encontrar algum elixir de vida eterna.
É razoavelmente conhecida a menção feita por Michel Foucault em As palavras e as coisas, via Jorge Luís Borges, ao bom e velho Shih Huang Ti. Borges, reporta Foucault, acredita que tanto a Muralha da China quanto a destruição de livros têm a ver com uma tentativa de dominar o tempo e o espaço, uma forma de garantir sua unidade e vigência. Em suas – de Borges – explorações literárias dessa figura histórica chinesa, surge a referência a uma “enciclopédia chinesa” do imperador, explorando as possibilidades trazidas pelas ideias de “lista”, “classificação” e afins, elementos que ampliam a perspectiva de conhecimento e sapiência de um sujeito em relação ao mundo em que vive. No caso da enciclopédia chinesa de Borges, é difícil escapar à tentação de citar, mais uma vez, as categorias que organizariam, no mundo considerado a partir do olhar que lhe era lançado pelo imperador, a divisão entre os animais: “a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cachorros soltos, h) incluídos nessa classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo, l) etcétera, m) que acabam de quebrar o vaso, n) que de longe parecem moscas.” Aparentemente sem lógica, ou imersa numa lógica em princípio absurda, a enciclopédia representaria uma visão de mundo, mas a visão de alguém com o poder de introduzi-la, de impô-la ao mundo. De uma forma ou de outras, Shih Huang Ti pode ser lembrado como um governante que reconheceu muito diretamente a importância da linguagem para estabelecer os limites do controle social e levar a efeito qualquer decisão de um sujeito, seja ele institucional ou individual. Essa, aliás, é uma constatação de suma importância: em sociedade, o poder se estabelece pela linguagem, pelas linguagens; a linguagem, as linguagens, são conjuntos de gestos, de significações. E, ainda assim, falamos tão pouco na importância da linguagem para o estabelecimento das relações econômicas e sociais. A linguagem, fenômeno tão banal quanto fundamental para a existência humana e para as relações sociais, guarda consigo o acesso a, virtualmente, todas as questões identificadas como pertencentes às ciências humanas, sociais e seus campos afins. Muito filosoficamente falando, podemos partir de uma premissa realista, materialista, empírica, de que as coisas são o que elas são, mas não podemos jamais perder de vista que, na prática, nós sempre agimos de acordo com os termos em que as idealizamos, descrevemos, representamos. Afinal, pode-se sempre argumentar que o único meio de tornar operacionais nossas visões e concepções de mundo, de torná-las produtivas, é convertendo-as em “palavras” – em “gestos”, “significados”, “valores” etc. As “palavras” antecedem e se confundem com as ações, e depois que elas se encerram, mantêm-nas na memória das pessoas, dos grupos, das instituições. Com a progressão de nossa pesquisa – originalmente proposta no interesse de constituição de um campo disciplinar para a Economia Criativa – notamos que a formulação de um glossário facilitaria a remissão e a formulação de relações entre conceitos e definições empregadas por vezes de forma tão naturalizada que nem se reconhecem mais como parte de um arsenal analítico e interpretativo explícita e implicitamente ligados a uma visão de mundo, a uma weltanshauung, a uma crença e aos interesses que os indivíduos e os grupos mantêm em relação a ela. Em termos de análise isto quer dizer que extrapolando o interesse sobre a Economia Criativa para a Economia em sentido disciplinar amplo, e observando-a como um sistema discursivo específico, podem-se isolar termos e verificar suas “trajetórias discursivas”, seus impactos históricos efetivos e suas eventuais distorções, perversões, inversões etc. O pensamento econômico – noção que por sua vez extrapola a nocão de “ciência econômica”, mas sem perder o rigor – lança mão de ordens, de classes, de categorias etc. que não se põem como relevantes porque eles se encontram naturalizados no discurso: nos conceitos, nas definições, nas fórmulas, nas constantes e nas variáveis. Passamos, assim, a listar termos que refletem não somente os posicionamentos metodológicos necessários para o estabelecimento de padrões e parâmetros de aferição da “criatividade” como uma componência específica no campo do pensamento econômico contemporâneo, mas também para a forma como o discurso econômico se estrutura em torno de uma evidência cada vez menos tangível e objetivável nos termos em que se estabelecem os princípios da ação econômica capitalista. Elaborar este glossário foi aos poucos se tornando um exercício fundamental para provocar a dissolução e articulação entre modos de pensamento em princípio tão radicalmente distintos que sua presença simultânea num ensaio qualquer pode imputar a pecha de uma argumentação contraditória. Desmontar, desconectar os termos de suas “celas discursivas” permite reduzi-las a um estado quase neutro, a ordem alfabética. Não que os termos percam sua vinculação a certos contextos de interesses, mas a listagem de termos permite pelo menos que as diferenças e nuances de um termo se evidenciem numa ou em outra abordagem. Infelizmente, é claro, não se tratava de elaborar um verdadeiro dicionário, trabalho que demandaria um tempo e esforço que não condizem com as condições e o interesse da pesquisa em desenvolvimento. Não tratava de fixar variações de termos e cotejamentos de definições apresentadas por estudiosos e por textos documentais. Por buscarmos a crítica e a participação na proposição de um modelo metodológico para a Economia Criativa, pareceu-nos que a síntese precisaria ser mais direta, aproximando não somente referências mas também imagens, metáforas, analogias, aproximações semânticas. Como resultado, passamos a obter não mais “verbetes”, no sentido estrito do termo, mas pequenos ensaios que exploram tais propriedades nos termos elencados. Esperamos que o glossário seja de utilidade para outros estudiosos e curiosos a respeito dos temas e questões envolvidos no processo de desenvolvimento do pensamento econômico, esperando também que as condições de pesquisa se estabilizem para que o trabalho mantenha sua previsão de desenvolvimento. |