TAKE DOIS - GALERIA DE ARTE ESPAÇO UNIVERSITÁRIO / UFES. A vida política e cultural tem muitos fronts, e a Literatura (que é o meu primeiro interesse) chamava. A UFES está retomando o estímulo à atividade cultural, sua Secretaria de Cultura vem implementando e consolidando núcleos de produção e um circuito cultural, uma dinâmica de redes. Há carências, há dificuldades, mas há abertura, e há diálogo. Uma Galeria de Arte que se abre para a Literatura. Uma Literatura que se esforça para se abrir para as mulheres.
Bernadette Lyra é uma espécie de amuleto entre os literatos locais, pelo menos aqueles mais imediatamente ligados à Ufes -- professores, pós-graduandos e (ex-)vestibulandos. É um dos símbolos de resistência e de ousadia da Literatura, e faz lembrar os tempos mais ou menos heroicos em que as mulheres passaram a tomar a Palavra -- literariamente falando -- para escapar ao controle masculino do imaginário, inclusive do imaginário feminino que fecha e sela o destino das mulheres em papeis previsíveis e subordinados à presença masculina.
O salão da Galeria de Arte, normalmente preenchido por imagens, tinha apenas as suas paredes nuas, brancas. Pareciam pedir para ser rabiscadas por mulheres com fome de escrever. Pareciam refletir nos olhos de Bernandette a fome por escrever, por conquistar territórios para a escrita das mulheres. Apesar de achar um tanto anacrônica a condição de descoberta dessa potência, e da necessidade de falar dela de forma mais programática, eu atentava, ouvia, escutava.
(E enquanto ouvia a fala da convidada, era a minha memória -- masculina? -- que me envolvia e me fazia relembrar de uma torrente de mulheres fortes, decididas, batalhadoras, que encontrei pela vida a fora. No correr do encontro, falei um pouco sobre elas, que destoam das representações típicas e que, embora não tenham sido capazes de sobrepujar o mundo do macho-adulto-sempre-no-controle, criaram outros mundos, levaram o matriarcado a comunidades, igrejas, escolas etc. Mulheres que dominam relações afetivas, controlam o “contrato do casamento” que os homens talvez nunca decifrem muito bem. Mulheres que, se não referidas nas fontes convencionais da História, alimentam o sentido do mundo, do meu e, pelo menos entre os presentes, também o do Marcos Tavares, outra testemunha da força da muher em alguns espaços culturais e sociais -- certamente não os mais institucionais, os mais centrais. Mas isso talvez não seja pouca coisa.)
Enquanto ouvia a fala de Bernadette, minha cabeça oscilava e pendia para o que poderia estar acontecendo na Reunião do Conselho Estadual de Cultura, que acontecia simultaneamente, bem no centro do poder político estatal. Forçava a memória e procurava me lembrar dos rostos, das presenças. E para cada homem que me vinha à memória como representativo do movimento Ocupa Secult, eu facilmente me lembrava de pelo menos três mulheres. Se o status quo ainda é masculino, a subversão --- ao menos até aqui, parece categoricamente ocupada pelo feminino. E aí me vinha a questão: onde está a fragilidade, onde está a diferença negativa entre homens e mulheres no presente? Não se trata da ingenuidade de uma visão que ignoraria a opressão instalada contra a mulher, sua baixa representatividade na vida política oficial, sua exploração explícita no mundo do trabalho. Mas, dependendo de para onde se olhe, serão vistas mais ou menos mulheres posicionadas, mais presente ou mais ausentes.
Sabemos que estamos num dos estados mais violentos contra a mulher, o Espírito Santo infelizmente é famoso por isso. Mas sabemos que as mulheres capixabas não são uma simples massa de manobra há muito tempo, e sabemos que se elas não progridem tanto quanto poderiam em suas representações sociais, isso não se deve somente a uma barreira imposta pelos homens; também elas participam ativamente na formação e acionamento dessas barreiras, pelos motivos mais humanos que se possa pensar: orgulho, inveja, medo etc. etc. etc. Sabemos que as mulheres são sobreviventes culturais e que essa sobrevivência está intimamente associada com o desenvolvimento de uma capacidade de viver em camadas, fases, momentos. Em dado momento, a autora de Aqui começa a dança e de A vida secreta das enceradeiras relembra o dito segundo o qual toda mulher plena vive ao menos três vidas: uma que ela tem, uma que ela poderia ter tido e uma que ela nunca pode deixar que os outros saibam que ela teve - ou tem.
É preciso, então, reconstruir, produzir novos olhares, superar as diferenças mais óbvias e menos inteligentes que impedem a afimação do feminino como um conjunto de identidades legítimas. É preciso, então, convidar as mulheres (e os homens) para uma outra dança, em que eles não precisem ficar aprisionados a uma grande e unívoca “máscara de macho”. É preciso que essa dança aponte novos passos, novas coreogafias, novos caminhos. Novas narrativas que, ficcionais e mentirosas, possam doar novas possibilidades de existência para os homens, as mulheres e suas tantas diversidades.
Bernadette discorreu sobre esse universo de questões, procurando ressaltar e estimular tomadas de posição por parte da plateia feminina. (Nós-homens, nessas situações, não sabemos muito bem onde devemos nos colocar, porque simplesmente ceder a palavra de certa forma implica ceder à ordenação do outro. Pessoalmente, não tenho nenhum interesse, ao menos consciente, em subordinar as mulheres; mas, ao mesmo tempo, não tenho nenhum interesse em deixar que elas me subordinem. É aí que me lembro, a dominação não é uma característica irremediavelmente associada às questões de gênero, mas às questões sociais. A dominação de gênero é uma extensão da dominação social em sentido amplo. A Literatura consegue produzir ainda hoje uma discussão sobre o assunto? Apostemos que sim.)
Em alguns momentos, a urgência de preencher esse espaço de fala -- a autoria feminina -- pareceu ela mesma conter algo de opressivo, mas acho que essa sensação é provocada por qualquer motivo ideológico tomado como mais urgente, as famosas “bandeiras de luta”. Eu ouvia e tentava localizar a plateia: a autora experiente fazia uma análise pessoal de questões técnicas da narrativa, e ao mesmo tempo ressaltava a componente que torna o texto capaz de subversão: o deslocamento das representações com as quais os leitores e leitoras estão familiarizados, as referências do que eles e elas consideram previsível e natural.
O objetivo -- de Bernadette, da Edufes, da Secretaria de Cultura da Ufes, que promoveram o evento -- era nitidamente o de despertar as literatas, e entre elas as escritoras, para pautarem suas futuras produções literárias numa direção que pode unir o experimental (por exemplo pela via da ficção de caráter historiográfico) e o ideológico (abrindo a “caixa preta” onde se formam as representações sobre o feminino: o imaginário). Afinal, introduzir uma diferença feminina nos quadros mais convencionais de desenvolvimento da narrativa significa modificar estruturas e funções dessa narrativa, significa descobrir, modelar novos lugares ficcionais. Durante o encontro foram explicitados os interesses institucionais de retomar, de reconectar a Secretaria de Cultura da UFES ao movimento bruscamente interrompido no início dos anos 1990, quando a Coleção Letras Capixabas foi interrompida. A proposta é de retomada das ações formativas, do debate entre literatos, da difusão literária.
Eu, como cronista também desse front da grande guerra simbólica pela Cultura no Estado do ES, me protejo e avanço como posso de dentro dessa frágil trincheira que se dá na posição do observador. Não sou uma mulher, e teria alguma dificuldade para definir o que exatamente terá validade caso queira me identificar nesse ou em outros espaços como homem. Nunca tive poder, e gosto de me orgulhar de tê-lo recusado algumas vezes, inclusive porque isso de alguma forma me afastou da figura típica do dominador. Nunca tive lugar definido, e muitas vezes me senti recusado, negado pelos espaços de representação e por seu agentes mais ou menos eméritos. Não sou mulher, mas não sou rico; sou mestiço: certamente não branco, indubitavelmente não negro, quase-quase passo por índio. Devo pretender ser aceito por todos, ou melhor me conformar em não ser lido por ninguém?
Finalmente, a conversa com Bernadette Lyra chega ao ponto de conexão mais óbvio com o Seminário Metodológico Economia Criativa no ES: a Literatura como um sistema envolve ao mesmo tempo um esforço de produção, uma perspectiva de mercantilização, um modo de subsistência. O gesto da UFES é simbólico, aponta direções, estabelece retomadas de trilhas dadas como abandonadas, condenadas. Há espaço para leitores daquilo que têm a dizer as mulheres, e isso não deve ser reduzido à ideia de que há um nicho de mercado para que se ganhe dinheiro com as mulheres consumidoras de livros. É preciso vender ideias junto com os livros, junto com os textos. É preciso vender imaginação -- e da boa.
A Edufes reabre uma frente de batalhas, estimular a escrita feminina e gerar visibilidade para ela. Que venha Bernadette, que venha sua Capitoa, que venham suas heroínas para provocar as mulheres a saírem de suas caixas, a deixarem de ser amélias e barbies, cinderelas e viúvas-negras quando conseguiem caminhar por outros territórios ficcionais.
Bernadette Lyra é uma espécie de amuleto entre os literatos locais, pelo menos aqueles mais imediatamente ligados à Ufes -- professores, pós-graduandos e (ex-)vestibulandos. É um dos símbolos de resistência e de ousadia da Literatura, e faz lembrar os tempos mais ou menos heroicos em que as mulheres passaram a tomar a Palavra -- literariamente falando -- para escapar ao controle masculino do imaginário, inclusive do imaginário feminino que fecha e sela o destino das mulheres em papeis previsíveis e subordinados à presença masculina.
O salão da Galeria de Arte, normalmente preenchido por imagens, tinha apenas as suas paredes nuas, brancas. Pareciam pedir para ser rabiscadas por mulheres com fome de escrever. Pareciam refletir nos olhos de Bernandette a fome por escrever, por conquistar territórios para a escrita das mulheres. Apesar de achar um tanto anacrônica a condição de descoberta dessa potência, e da necessidade de falar dela de forma mais programática, eu atentava, ouvia, escutava.
(E enquanto ouvia a fala da convidada, era a minha memória -- masculina? -- que me envolvia e me fazia relembrar de uma torrente de mulheres fortes, decididas, batalhadoras, que encontrei pela vida a fora. No correr do encontro, falei um pouco sobre elas, que destoam das representações típicas e que, embora não tenham sido capazes de sobrepujar o mundo do macho-adulto-sempre-no-controle, criaram outros mundos, levaram o matriarcado a comunidades, igrejas, escolas etc. Mulheres que dominam relações afetivas, controlam o “contrato do casamento” que os homens talvez nunca decifrem muito bem. Mulheres que, se não referidas nas fontes convencionais da História, alimentam o sentido do mundo, do meu e, pelo menos entre os presentes, também o do Marcos Tavares, outra testemunha da força da muher em alguns espaços culturais e sociais -- certamente não os mais institucionais, os mais centrais. Mas isso talvez não seja pouca coisa.)
Enquanto ouvia a fala de Bernadette, minha cabeça oscilava e pendia para o que poderia estar acontecendo na Reunião do Conselho Estadual de Cultura, que acontecia simultaneamente, bem no centro do poder político estatal. Forçava a memória e procurava me lembrar dos rostos, das presenças. E para cada homem que me vinha à memória como representativo do movimento Ocupa Secult, eu facilmente me lembrava de pelo menos três mulheres. Se o status quo ainda é masculino, a subversão --- ao menos até aqui, parece categoricamente ocupada pelo feminino. E aí me vinha a questão: onde está a fragilidade, onde está a diferença negativa entre homens e mulheres no presente? Não se trata da ingenuidade de uma visão que ignoraria a opressão instalada contra a mulher, sua baixa representatividade na vida política oficial, sua exploração explícita no mundo do trabalho. Mas, dependendo de para onde se olhe, serão vistas mais ou menos mulheres posicionadas, mais presente ou mais ausentes.
Sabemos que estamos num dos estados mais violentos contra a mulher, o Espírito Santo infelizmente é famoso por isso. Mas sabemos que as mulheres capixabas não são uma simples massa de manobra há muito tempo, e sabemos que se elas não progridem tanto quanto poderiam em suas representações sociais, isso não se deve somente a uma barreira imposta pelos homens; também elas participam ativamente na formação e acionamento dessas barreiras, pelos motivos mais humanos que se possa pensar: orgulho, inveja, medo etc. etc. etc. Sabemos que as mulheres são sobreviventes culturais e que essa sobrevivência está intimamente associada com o desenvolvimento de uma capacidade de viver em camadas, fases, momentos. Em dado momento, a autora de Aqui começa a dança e de A vida secreta das enceradeiras relembra o dito segundo o qual toda mulher plena vive ao menos três vidas: uma que ela tem, uma que ela poderia ter tido e uma que ela nunca pode deixar que os outros saibam que ela teve - ou tem.
É preciso, então, reconstruir, produzir novos olhares, superar as diferenças mais óbvias e menos inteligentes que impedem a afimação do feminino como um conjunto de identidades legítimas. É preciso, então, convidar as mulheres (e os homens) para uma outra dança, em que eles não precisem ficar aprisionados a uma grande e unívoca “máscara de macho”. É preciso que essa dança aponte novos passos, novas coreogafias, novos caminhos. Novas narrativas que, ficcionais e mentirosas, possam doar novas possibilidades de existência para os homens, as mulheres e suas tantas diversidades.
Bernadette discorreu sobre esse universo de questões, procurando ressaltar e estimular tomadas de posição por parte da plateia feminina. (Nós-homens, nessas situações, não sabemos muito bem onde devemos nos colocar, porque simplesmente ceder a palavra de certa forma implica ceder à ordenação do outro. Pessoalmente, não tenho nenhum interesse, ao menos consciente, em subordinar as mulheres; mas, ao mesmo tempo, não tenho nenhum interesse em deixar que elas me subordinem. É aí que me lembro, a dominação não é uma característica irremediavelmente associada às questões de gênero, mas às questões sociais. A dominação de gênero é uma extensão da dominação social em sentido amplo. A Literatura consegue produzir ainda hoje uma discussão sobre o assunto? Apostemos que sim.)
Em alguns momentos, a urgência de preencher esse espaço de fala -- a autoria feminina -- pareceu ela mesma conter algo de opressivo, mas acho que essa sensação é provocada por qualquer motivo ideológico tomado como mais urgente, as famosas “bandeiras de luta”. Eu ouvia e tentava localizar a plateia: a autora experiente fazia uma análise pessoal de questões técnicas da narrativa, e ao mesmo tempo ressaltava a componente que torna o texto capaz de subversão: o deslocamento das representações com as quais os leitores e leitoras estão familiarizados, as referências do que eles e elas consideram previsível e natural.
O objetivo -- de Bernadette, da Edufes, da Secretaria de Cultura da Ufes, que promoveram o evento -- era nitidamente o de despertar as literatas, e entre elas as escritoras, para pautarem suas futuras produções literárias numa direção que pode unir o experimental (por exemplo pela via da ficção de caráter historiográfico) e o ideológico (abrindo a “caixa preta” onde se formam as representações sobre o feminino: o imaginário). Afinal, introduzir uma diferença feminina nos quadros mais convencionais de desenvolvimento da narrativa significa modificar estruturas e funções dessa narrativa, significa descobrir, modelar novos lugares ficcionais. Durante o encontro foram explicitados os interesses institucionais de retomar, de reconectar a Secretaria de Cultura da UFES ao movimento bruscamente interrompido no início dos anos 1990, quando a Coleção Letras Capixabas foi interrompida. A proposta é de retomada das ações formativas, do debate entre literatos, da difusão literária.
Eu, como cronista também desse front da grande guerra simbólica pela Cultura no Estado do ES, me protejo e avanço como posso de dentro dessa frágil trincheira que se dá na posição do observador. Não sou uma mulher, e teria alguma dificuldade para definir o que exatamente terá validade caso queira me identificar nesse ou em outros espaços como homem. Nunca tive poder, e gosto de me orgulhar de tê-lo recusado algumas vezes, inclusive porque isso de alguma forma me afastou da figura típica do dominador. Nunca tive lugar definido, e muitas vezes me senti recusado, negado pelos espaços de representação e por seu agentes mais ou menos eméritos. Não sou mulher, mas não sou rico; sou mestiço: certamente não branco, indubitavelmente não negro, quase-quase passo por índio. Devo pretender ser aceito por todos, ou melhor me conformar em não ser lido por ninguém?
Finalmente, a conversa com Bernadette Lyra chega ao ponto de conexão mais óbvio com o Seminário Metodológico Economia Criativa no ES: a Literatura como um sistema envolve ao mesmo tempo um esforço de produção, uma perspectiva de mercantilização, um modo de subsistência. O gesto da UFES é simbólico, aponta direções, estabelece retomadas de trilhas dadas como abandonadas, condenadas. Há espaço para leitores daquilo que têm a dizer as mulheres, e isso não deve ser reduzido à ideia de que há um nicho de mercado para que se ganhe dinheiro com as mulheres consumidoras de livros. É preciso vender ideias junto com os livros, junto com os textos. É preciso vender imaginação -- e da boa.
A Edufes reabre uma frente de batalhas, estimular a escrita feminina e gerar visibilidade para ela. Que venha Bernadette, que venha sua Capitoa, que venham suas heroínas para provocar as mulheres a saírem de suas caixas, a deixarem de ser amélias e barbies, cinderelas e viúvas-negras quando conseguiem caminhar por outros territórios ficcionais.